A RAINHA DO ABISMO - capítulo 01 - Um trabalho sujo
A Rainha do Abismo - Série Detetive Amanda Cruz.
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PARTE I – NAS RUAS DO PECADO
Capitulo 01 – Um Trabalho Sujo
Não que tivesse gostos caros, mas a vida de camgirl estava cada vez mais difícil. Amanda topou seu primeiro programa depois de anunciar em um catálogo online de garotas. O cachê era consideravelmente melhor e o aluguel estava atrasado. “Aproveita enquanto pode, amiga, daqui a um tempo você não vai poder escolher mais” ou ainda “webcam não dá dinheiro”, foi o que ouvira mais de uma vez de algumas colegas de trabalho. Já estava no final dos 20 e havia desperdiçado grande parte desse tempo sonhando em terminar uma das duas faculdades que começou. Era uma procrastinadora exemplar e planejava sua vida profissional tão bem como escolhia seus relacionamentos. Sabia disso e tomou a decisão em um dia frio de junho, depois de mais uma noite sem clientes e os boletos vencidos se acumulando em cima do micro-ondas amarelado na cozinha/sala do cubículo que alugava perto do centro da cidade.
Ventava bastante, tentava acender o isqueiro pela quinta ou sexta fez, o BIC rosa choque brilhava com as faíscas no escuro, o cigarro entre os dentes, a brasa da guimba do outro ainda acesa no chão sujo da calçada. O vestido curto e apertado realçava seus seios durinhos e o salto agulha empinava ainda mais sua bunda. As árvores da avenida balançavam com o vento quando o taxi chegou, por conta do cliente, “que diferença” pensou ela, na webcam os sovinas reclamavam de R$9,99 por duas chamadas de meia hora por semana. Aqueles babacas não sabiam que para uma sessão de meia hora ela gastava no mínimo o dobro de tempo para se maquiar e preparar. Olhava pela janela do taxi, o estofado da poltrona cheirava a pinho sol e vômito. Do outro lado da janela as luzes da cidade à noite, mendigos nas calçadas, motoboys acelerando nas ruas desertas, prostitutas… pensou se ela seria uma daquelas daqui a algum tempo. Sentia-se mal, suja. Sentia algo parecido se expondo na webcam, mas agora era pior, bem pior.
O taxista a deixou na frente de um prédio comercial. Na entrada a porta ainda estava aberta e ela foi atendida por uma senhora de uniforme encardido. A senhora discou um número no telefone, trocou algumas palavras com a pessoa do outro lado e indicou o caminho do elevador:
- No turno da madrugada não temos ascensorista, mas não tem como errar.
- Sem problemas.
Era um elevador velho de um prédio velho. Quando Amanda chegou no décimo segundo andar, uma campainha ecoou pelo corredor. Um tapete marrom seguia até uma porta acesa no fim do corredor. Sala 127. Bateu à porta. “Quem tá na chuva é para se molhar”. Faria aquele programa da mesma forma que rebolava e dançava na webcam, depois tomaria um banho, beberia dois ou três copos de vodka e deitaria sua cabeça no travesseiro sem pensar naquilo. Era assim que funcionava. Quanto tempo ela imaginou que conseguiria atrasar isso? Era uma puta, sempre foi, aquele não era o momento para questionamentos morais. Precisava do dinheiro e seguiu em frente.
Uma mulher abriu a porta com um sorriso, uma senhora de cabelos brancos e terninho vermelho. Dois homens de meia idade, de terno e gravata, um deles sentava em uma poltrona de couro e o outro estava escorado em uma mesa de madeira com um copo de uísque na mão e um cigarro aceso na boca. A sala era um escritório padrão. A mobília era brega. Alguns armários de arquivos, uma estante de livros em uma das paredes. Uma samambaia solitária em um vaso branco no canto da porta era a única coisa que quebrava o aspecto marrom de madeira e couro do lugar.
- Olha, não faço grupal nem menagé! - Amanda disse, claramente frustrada.
- Você é uma puta muito exigente não acha? - Riu o homem sentado na poltrona de couro. Amanda reconheceu sua voz como a mesma do telefone. Era ele que havia marcado o programa.
- Podemos triplicar o preço. Três clientes, três cachês – disse a senhora de forma diplomática.
Se sentia ainda pior, estava arrependida, não queria aquilo, desde o começo. Era muito diferente de uma performance na cam. Imaginou o cheiro, os corpos se esfregando e ela sendo penetrada, pessoas estranhas obtendo prazer às custas dela.
- Não quero mais. Não quero fazer…
Amanda se virou para a porta no momento que a senhora de paletó vermelho trancava a fechadura.
- Tarde demais, moça, você já é nossa – disse a mulher grisalha.
Antes que ela pudesse gritar, um dos homens tapou sua boca e nariz com um pano úmido e a última coisa que viu foi os dentes amarelos da mulher grisalha rindo perversamente para ela.
Acordou ainda tonta, com a visão embaçada. Era uma sala escura e úmida. Tentou se mexer, seus braços e pernas estavam amarrados com cordas a mosquetões de ferro. Ela estava nua em uma plataforma de pedra lisa que mais parecia uma grande mesa. No alto, um teto abobadado horrível gotejava no piso de pedra. Cheirava a mofo e a uma imundície desconhecida. Um pequeno holofote brilhava da parede com fios soltos que seguiam pelo canto até uma bateria de carro no chão.
Amanda reconheceu a senhora grisalha. Estava com uma capa vermelha e um capuz aberto. Lia algo em um livro de couro preto. Os dois homens estavam nus, de olhos fechados no canto da sala, virados para a parede. Eles cantavam alguma música estranha, uma melodia desconhecida, Amanda tentou gritar mas nada saiu de sua garganta, sentia seu próprio coração batendo como um tambor dentro do peito. A senhora de vermelho levantou o livro preto com as duas mãos em direção ao teto abobadado, recitando algo em voz alta em uma língua desconhecida. Sua voz era grave, gutural.
Os gritos da senhora de vermelho ecoaram pelo salão de pedra até que os homens nus virados para a parede pararam de sussurrar sua estranha canção. A mulher de vermelho se ajoelhou e abriu os braços em uma posição de submissão, uma reverência a algo ou alguém. Uma presença maligna que já parecia estar ali. Ela podia sentir, sentir o mal. Havia mais alguma coisa no lugar e aquilo não era humano. Amanda tentava gritar mas não conseguia, suas lágrimas salgadas desciam por sua garganta. Sentiu um movimento atrás da sua cabeça, uma espécie de baforada pútrida, o cheiro pior que uma lata de lixo aberta. Era podre.
- Eu lhe presenteio com esta jovem mulher! Espero que seja um sacrifício à altura, meu Senhor.
Ao olhar para trás, Amanda contemplou uma figura difícil de descrever. Era escura e quase disforme, seus tentáculos grossos serpenteavam para fora de algo que parecia uma boca ou um bico. Os olhos estavam em uma posição errada daquela que deveriam estar. O cheiro era horrível, era como estar mergulhada em uma fossa. Sua visão começou a ficar embaçada novamente, se sentiu mole e não conseguia mais se debater. Um dos tentáculos tocou sua pele, era grande, pesado, e muito quente, quase escaldava sua pele. Não conseguia reagir, não conseguia piscar, sentia que ia morrer ali mesmo. Em uma fração de segundos, um vulto no canto do seu olho entrou na sala. Com ele veio fogo, muito fogo, vários barulhos de tiros e gritos ecoavam no mesmo instante pela sala. Uma tocha acesa com uma chama negra voou girando bem acima do seu corpo e atingiu a criatura que soltou um uivo indescritível. O barulho pavoroso do grito da criatura pareceu despertar os sentidos de Amanda que finalmente conseguiu gritar por socorro. O grito da moça foi mais alto que o do próprio monstro. O caos era geral dentro da cripta. Labaredas de fogo lambiam as paredes, os sons de gritos e tiros ribombavam na atmosfera densa e úmida. Ela viu um dos homens pelados entrar em um corredor que até então havia passado despercebido por ela. Uma mão segurou o seu braço, ela gritou ainda mais alto. Era um homem velho. Vestia um moletom de time de futebol, empunhava uma faca em uma das mãos e um revólver com o cano fumegante na outra. Cortou as cordas e a soltou. O velho a cobriu com um cobertor listrado e seguiu ate a entrada de um corredor. A cripta cheirava forte a enxofre. Havia o corpo de um homem nu jogado no chão. O monstro havia desaparecido e uma luz estranha, diferente do holofote improvisado, emanava do chão de um dos cantos da sala onde antes estava a criatura.
- Vi um deles entrando por aqui – ela disse ao velho.
- Já estão longe a essa altura. Aqueles filhos da puta. Me espere aqui.
O velho pegou um galão de gasolina e desceu alguns degraus até a cripta. A moça ouviu um barulho de líquido derramando no chão. Ela viu quando o velho subiu novamente as escadas com o livro de couro preto debaixo de um dos braços enquanto o fogo se alastrava no salão. O velho a segurou pelas mãos e subiram juntos dois jogos de escadas até uma outra sala com poltronas empoeiradas, daquelas compridas de igreja. Saíram por uma porta de madeira que dava para um grande gramado. Olhou para trás, era uma capela de madeira arruinada no meio do mato. Atravessaram uma pequena área de mata e atrás de uma cerca viva de ora pro nobis estava um Chevrolet Opala com a chave na ignição e já ligado em ponto morto. Amanda não precisou ouvir o convite para sentar no banco do carona. O carro derrapou na grama úmida de orvalho e ganhou uma estradinha de terra.
- Sei que tem muitas perguntas, moça, mas meu programa preferido na 610 AM acabou de começar. - O velho ligou o rádio após olhar no relógio de pulso.
“Essa foi mais uma daquelas antigas que deixam saudade… Aqui na 610 AM, só as músicas que explodem o coração”.
- Tem um celular que eu possa ligar pra Polícia?
- Hahaha, polícia... - Tirou um cigarro do porta-luvas e acendeu com um zippo de latão.
Olhou para o velho, o cabelo grisalho amarrado na nuca em um rabo de cavalo ridículo contrastava com as entradas de calvície na frente. À distância brilhavam os faróis de um carro.
- São eles!? - perguntou a moça, apontando para as luzes dos faróis, as lágrimas borrando toda a maquiagem.
- Sim, aqueles malditos.
- A mulher de vermelho…
- Ela mesma, e aquele filho da puta do caralho.
- Não vamos atrás deles, né!? - Ela percebeu que soluçava em meio ao choro.
- Não, não iremos.
- Quem são eles?
- Apenas Acólitos. Eu queria a larva, o bebê.
- Você fala do monstro?
- Sim o “monstro”...
- Mas o que eles queriam? Por que fizeram aquilo comigo?
“Depósito Tupinambá, tudo para a sua reforma, cobrimos qualquer oferta da região… Agora mais uma daquelas que deixaram saudade… Saudades, Tim, o descobridor dos sete mares… Só aqui na 610...”
- É uma longa história. Eu gosto dessa. - Aumentou o volume do rádio.
Já estava amanhecendo. Os raios do sol refletiam nas nuvens tingindo-as em diversos tons de vermelho. Como pedaços de algodão mergulhados em sangue. A essa altura eles já haviam chegado na cidade.
- Onde você mora?
- No bairro da Várzea, rua sete.
- Sei onde fica, mais ou menos.
A classe proletária já ganhava as ruas. Formiguinhas trabalhadoras. Feições tristes em corpos apressados. Quem tinha um emprego poderia se considerar sortudo. Era uma crise econômica. Outra, para variar. Rumores sobre um novo vírus na Ásia, aumento do preço das commodities, o de sempre. O velho de moletom parou o Opala em frente o prédio.
- Então, acho que é isso…
- O que eu faço? - perguntou a moça, estava muito confusa, acólitos, larvas, um bebê? Não havia entendido nada daquela noite maldita, só sabia que aquele velho a salvara e que estava envolvida na morte de, pelo menos, uma pessoa, o homem nu cujo corpo foi queimado dentro da cripta.
- Você foi tocada por um nativo do inferno. Precisamos resolver isso depois, esse é meu contato. – Deu a ela um cartão. – Não ligue para a Polícia e diga que viu um monstro ou algo do tipo, vão rir de você.
- E aquele cara? Você matou ele.
- E daí?
- A Polícia…
- A Polícia tem mais crimes pra investigar do que você imagina. Além do mais, os cultistas escondem muito bem seus segredinhos sujos.
Ainda ventava muito quando ela desceu do Opala. Entrou no prédio com o cobertor listrado. O zelador ainda não havia chegado. Um vizinho que saía para o trabalho a viu subir as escadas e olhou pra ela com os olhos arregalados. Pegou a chave debaixo do tapete encardido na porta do apartamento. Tudo aquilo era surreal. “Nativo do inferno, cultistas” pensou ela. Que loucura. Aquele velho louco. Seu ombro ainda ardia onde um dos tentáculos do monstro tocaram.
Seu cabelo estava péssimo mesmo após o longo banho. O apartamento estava como ela o havia deixado. Era como se tudo tivesse sido um sonho maluco, uma bad trip de alguma droga desconhecida. Lá fora as buzinas dos carros e o barulho das ruas, era um dia como qualquer outro, mas não para ela. Pensou em fazer o de sempre, engolir três copos de vodka e deitar a cabeça no travesseiro como se nada tivesse acontecido. “Você não consegue nem ser uma puta decente”, pensou ela. Olhou o cartão do velho, DETETIVE PARTICULAR – JORGE - TEL. 2135-5792. Jogou o cartão no lixo, ser sequestrada por psicopatas, servir de oferenda para uma meleca gigante com tentáculos e ser salva por um homicida já tinha sido o suficiente.
Continua...
Teodoro Franco
Enviado por Teodoro Franco em 06/12/2024
Alterado em 18/02/2025