A Rainha do Abismo - Capítulo 02 - O Sonho
A Rainha do Abismo - Série Detetive Amanda Cruz.
Links da versão completa com 317 páginas no meu perfil.
------------
Capítulo 02 - O Sonho
- Amanda Cruz! Senha oitenta e nove!
A enfermeira gritou da sala de triagem. A Unidade de Pronto Atendimento estava cheia. Pessoas se sentavam nas cadeiras de plástico da sala apertada da recepção, outros sentavam-se no chão. Alguns parentes aguardavam do lado de fora, onde uma barraquinha vendia café, cigarros e empadas em meio a fuligem do asfalto e a fumaça dos veículos que passavam pela rua. Amanda estava em pé, encostada na parede, podia ver o corredor cheio de macas com pacientes deitados. Trabalhadores da saúde e familiares se acotovelavam no corredor estreito. Amanda foi até a pequena sala de triagem, nela os pacientes recebiam uma pulseira que poderia ter a cor verde, amarela ou vermelha, conforme a urgência.
- Boa noite. Amanda Cruz?
- Sim, eu mesma.
- Preciso do seu documento de identidade.
Amanda entregou o documento e se sentou na cadeira que tinha uma pequena mancha de sangue no estofado, mal limpa, que parecia estar ali há muito tempo.
- O que você está sentindo, Amanda?
- Não consigo dormir direito – respondeu meio sem graça. Nas quase três horas que ficara esperando na recepção, vira de tudo. Uma pessoa queimada sendo levada com pressa e aos gritos por uma equipe de resgate que desceu correndo de uma ambulância. Um cadeirante que estava desmaiado em meio ao próprio vômito e tinha sua cadeira de rodas empurrada por uma mulher idosa aos prantos. Viu ainda um bebê que tossia sem parar no colo de uma mãe preocupada.
- Não consegue dormir direito?
- É… hmm, tenho tido alguns pesadelos.
- Puxa vida, pesadelos... – A enfermeira respondeu como se tivesse sido vítima de uma brincadeira de mal gosto.
- Tenho ainda um machucado no ombro, mas é o de menos.
- Deixa eu ver esse machucado, pode tirar a blusa.
A enfermeira fechou a porta e deu uma olhada no ombro dela.
- Parece ser uma luxação. O que houve? Onde você se machucou?
- Hmm… eu caí.
- Sei... Olha, é o seguinte. Essa é uma Unidade de Emergência, atendemos acidentes, atropelamentos, facadas, ferimentos causados por armas de fogo, queimaduras e afins. O seu caso não parece grave, Amanda. Sobre as suas noites ruins de sono você pode se consultar em um hospital ou marcar um agendamento no Posto de Saúde mais próximo para uma consulta. Sobre o seu ombro, vou te marcar com a pulseira verde, certo? Você estará no fim da lista de prioridade.
- Sim, obrigada.
Amanda voltou para a sala de espera. Não reclamou, não depois de ter visto os outros enfermos. Mas ela sabia o que sofria durante as noites. Não podia explicar o que era, tinha medo de a julgarem como louca. Por vezes ela mesmo suspeitava estar.
Foi atendida depois de mais três horas de espera. O médico mal olhou para a cara dela. Examinou o ombro, puxou seu braço. Ela não falou sobre as noites mal dormidas.
- Não chega a ser uma luxação. É um hematoma, é seu corpo se recuperando de uma pancada.
- Hmm, Doutor…
- Diga. - O homem anotava alguma coisa na receita médica.
- Nada não.
Ele finalmente olhou para ela.
- Tem certeza? - Fez um tempo de silêncio, cerrou os olhos. – Tem alguma coisa que quer me dizer?
- Não, nada. – Ela se ajeitou na cadeira.
- Ok. Vou te receitar apenas paracetamol, 600mg. Esse machucado cura com o tempo. Tome três comprimidos por dia, por quatro dias. Se a dor parar antes, pare de tomar, ok?
- Certo. – Ela percebeu que ele segurava a receita enquanto ela tentava puxar o papel.
- Tem certeza que é só isso? - Os olhos do médico continuavam semicerrados, suspeitava do óbvio, que ela estava escondendo alguma coisa dele.
- Tenho, obrigado, Doutor.
Ela voltou para casa. Não sabia que horas eram. Seu corpo estava dez vezes pior do que antes de ir até o Pronto Socorro. Se sentia patética, uma idiota. Devia ter falado o que realmente estava acontecendo. Mas ela simplesmente não conseguia. Deitou na cama, o cansaço a tomava por completo.
Corria por um salão. Seu vestido branco esvoaçava pelo largo corredor de mármore preto, os pés descalços no piso gelado de granito. Olhou para trás e viu a larga entrada do pórtico, as nuvens escuras no céu crepuscular, não se lembrava de ter passado por ali. Continuou correndo, as longas janelas com vitrais coloridos nas laterais do corredor, até chegar a um trono enorme, feito de pedra. Olhou para o alto, o teto ricamente ornamentado com arabescos dourados servindo de moldura para uma pintura sobre um intrincado mosaico. Ao olhar melhor percebeu tratar-se de uma cena, soldados com lanças e escudos em um combate feroz. A face dos soldados era estranha, a anatomia também, algo estava fora do lugar em alguns deles. Olhou novamente para o trono de pedra, uma figura apenas ligeiramente masculina, quase andrógeno. Era enorme, gordo, bastante obeso, vestia uma espécie de túnica muito bem elaborada de tons escuros e dourados.
- Quem é você?
- Sou seu Príncipe. Você é minha. – A voz dele limpa e fina, angelical. Era como ouvir uma melodia.
- O que quer comigo? - Ela respondeu, não sentia medo.
Ele estendeu um dos braços, a palma de uma mão gorda bem aberta. Ela não conseguiu resistir, foi puxada violentamente entre o lugar que estava e o trono. A mão gorda envolveu seu pescoço. Os olhos brancos da entidade a observavam de uma cabeça careca e redonda.
- Quero comê-la. Mastigá-la e engolir seus pedaços. - Os dentes pontudos como caninos e a língua enorme destoavam da voz angelical. Abriu a boca em um ângulo anatomicamente impossível. Ela gritou o mais alto que pôde.
Acordou ainda gritando em seu pequeno apartamento. Sua camisola curtinha ensopada de suor. Os mamilos excitados pelo medo roçavam a roupa úmida quando ela se levantou da cama e acendeu a luz, ainda temendo as trevas do quarto. Foi até a torneira e pegou um copo grande de água. Levou a mãos ao ombro que agora tinha uma mancha ainda maior onde o tentáculo da criatura havia segurado, na cripta. Bebeu a água olhando para a lixeira onde havia jogado o cartão do velho. “Não acredito que vou fazer isso”. Era a terceira vez que sonhava a mesma coisa. Correndo pelo grande corredor de mármore preto e a figura nefasta sentada no trono de pedra.
Acendeu um cigarro para pensar. Discou no “tijolão” o número de telefone do cartão, uma peça de museu, seu celular se perdera no sequestro junto com sua melhor bolsa e documentos.
- Alô.
- Jorge?
- Ele mesmo. Quem fala?
- Sou a Amanda.
- A moça da cripta.
- Sim.
- Então. Já teve algum sonho ruim?
Ela ficou muda, “como ele sabia?” pensou.
- Alô? Tá aí ainda, moça?
- Como você sabe disso?
- Ahh... – Deu um suspiro. - É como eu te disse, uma longa história.
- Acho que preciso de ajuda.
- Eu sei. Me encontre no seguinte endereço: rua das Nogueiras, nº 71, bairro Cataguases. Venha sozinha. – Desligou o telefone logo depois.
Colocou a calça jeans, tênis, camiseta e uma jaqueta de couro. Desceu as escadas e ganhou as ruas. Já faziam três dias desde seu sequestro e da criatura com tentáculos. Já estava farta dos pesadelos. Pegou o ônibus na avenida já vazia na madrugada. No ônibus, além do motorista furibundo, só havia um passageiro na poltrona preferencial, fedia à cachaça e estava com o queixo encostado no peito, roncava. Amanda andou pelo corredor até se sentar na última poltrona. Olhava as luzes da cidade passando rápido pela janela, a sujeira das calçadas e a fauna humana que habitava a noite. Era uma cidade grande e feia de um país que nunca conseguiu se desenvolver completamente. O endereço era nos subúrbios. No caminho, uma favela se erguia enorme ao longo da avenida. Incrustada na montanha, os barracos irregulares se espalhavam no morro como uma árvore de natal decorada com inúmeras bolinhas luminosas. Em um muro na avenida, ela viu diversos jovens com as mãos na cabeça e as pernas abertas sendo revistados por policiais de armas em punho. O ônibus deixou finalmente a área central e chegou aos subúrbios da cidade, um bairro na região alta, bem servido com um novo hospital e praças bem cuidadas, um raro exemplo de gentrificação da cidade. O trajeto seguia por quatro ou cinco bairros dilapidados. Depois de percorrer a antiga região industrial, com dois ou três distritos agora cheios de galpões abandonados e lotes vagos, Amanda finalmente chegou até seu destino. “Seu ponto é esse, moça!” gritou o motorista rabugento. Pagou a passagem, ao descer do coletivo o outro passageiro ainda dormia roncando. Seguiu por mais duas ruas a pé depois de olhar o mapa amarelado pregado no ponto de ônibus. Procurava o número da casa quando viu o Chevrolet que a havia resgatado. Era uma porta de loja, daquelas de enrolar, que descem do teto. Ela bateu à porta que chacoalhou, o eco das batidas ecoaram pela rua vazia. Viu uma faísca se acender debaixo de uma árvore do outro lado da rua.
- Esperava por você. – O velho atravessou a rua enquanto guardava o isqueiro no bolso.
- O que está acontecendo comigo?
- Entre, vamos sair desse frio. – Soltava a fumaça do cigarro enquanto abria o portão de loja.
Ela passou curvada na porta levantada só até a metade. Topou com o que parecia ser uma oficina de carros desativada, seguiu o velho até uma parte do imóvel que fazia o papel de uma “casa”. Tinha um sofá todo encardido, com uma peça de carro por cima. Havia garrafas de cerveja no chão, empilhadas uma ao lado da outra com a boca para baixo, essas garrafas pareciam ser os únicos objetos minimamente organizados do lugar. O velho esticou o pescoço de um cômodo adjacente.
- Aceita uma cerveja?
Ela negou com a cabeça enquanto olhava o teto cheio de teias de aranha e fuligem.
- Como você sabia dos sonhos?
- Acontece com todos que foram tocados, assim como você.
- Como faço para parar?
- Vou resolver isso daqui a pouco. - Deu uma grande golada na garrafa de Brahma de 600ml.
- Quem é você?
- Você precisa antes saber quem são eles. Vou tentar resumir o máximo possível para você. – Apagou o cigarro em uma caneca suja de café na mesinha de centro. – Existe um conflito, uma treta, acontecendo no Inferno. Na verdade o “Inferno” não é exatamente o que você entende como tal, mas é o mais próximo que temos como referência cultural. Você foi pega no meio disso tudo, um sacrifício para um membro do que seria a nobreza deles.
- Por que queriam me sacrificar?
- Você é uma mulher jovem e bonita, tem um sabor especial. É como se fosse um sorvete de morango, ou uma coxinha. Não é nada especial, mas por exemplo, eu seria um angu, um jiló ou coisa parecida, ninguém entende muito bem o gosto daqueles filhos da puta. Mas enfim, você iria ser comida, seu corpo e sua alma comidos por um bebê da nobreza.
- Você fala do monstro? Esse é o bebê?
- Sim, a larva, já tem uns 400 anos, mas para eles ainda é um bebê.
- E por que você me salvou?
- Não fui para te salvar, fui lá para matá-lo.
- E quem eram aquelas pessoas?
- Acólitos, cultistas seguidores dessas entidades. Eles fazem isso por riqueza e poder aqui na terra. Acreditam também que irão garantir um “lugar ao sol” quando o “caldo entornar”, o “Armageddon”... Acham que ficarão salvos.
- Vou embora, é muita loucura, puta que pariu. – Levantou-se do sofá, botou um cigarro na boca, procurou o isqueiro nos bolsos da jaqueta. – Tem fogo aí?
- Que parte você acha loucura? - O velho esticou o braço pra acender o cigarro da moça com o zippo de latão. Os peitos dela eram durinhos e as coxas grossas e firmes. “Ah se eu fosse uns 20 anos mais novo” pensou, “porra, ela tem idade para ser minha neta, sossega aí, vovô, tenha o mínimo de decência” balançou a cabeça.
- O que está pensando? - perguntou ela ao ver Jorge balançando a cabeça branca.
- O que? Hmm. Que você é uma idiota, é isso que estou pensando.
- Ah, vá se foder! - Mostrou o dedo do meio. - Eu vou é embora, cansei dessa merda. Já passei por muita coisa nesses dias pra ficar escutando essas asneiras.
- Espere! Com toda desgraça que houve com você, ainda acha que isso é loucura? - Pegou de novo a garrafa de Brahma na mesinha de centro.
Amanda se calou, pensativa.
- Além do mais, precisamos fazer o ritual para limpar sua alma que foi profanada.
- Que ritual, porra?! - Ela se virou para Jorge com os olhos arregalados.
Continua...
Teodoro Franco
Enviado por Teodoro Franco em 13/12/2024
Alterado em 18/02/2025