Teodoro Franco

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A Rainha do Abismo - Capítulo 03 - Abdou
A Rainha do Abismo - Série Detetive Amanda Cruz.

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Capítulo 03 - Abdou


Depois de ter enfiado diversas vezes a escova de cobre dentro do cano, passou uma fina camada de óleo mineral nas juntas do ferrolho da pistola .40 e começou a esfregar com uma flanela limpa. Esfregou cuidadosamente o guarda-mão e a tala de madeira da coronha antes de remontar a arma. Encaixou por fim o compensador que dava a Imbel .40 um longo cano de 8 polegadas. Após isso fez o mesmo com a segunda arma, idêntica a primeira. Feito tudo, limpou os carregadores um a um, adaptados com prolongadores que estendiam sua capacidade para 19 munições cada. Limpas eram muito bonitas e pesavam cada uma 1,5kg. Sua empunhadura em madeira combinava com os coldres axilares de couro usados por Abdou. O africano de quase 2 metros de altura já estava vestido adequadamente ao terminar a limpeza das armas. Os sapatos de couro bem engraxados tinham uma tonalidade quase tão escura quanto a pele do homem que os calçava. A calça clara combinava com a gravata de seda listrada. Antes de sair pela porta do quarto de hotel, vestiu o paletó. Deixou a chave na recepção e saiu cantando os pneus do sedan alemão.

Desembarcou do veículo, ajeitou o paletó, e seguiu até o restaurante do outro lado da calçada. O estabelecimento estava em um dia bom, os garçons serpenteavam por entre as mesas com seus uniformes preto e brancos e bandejas cheias. As bonitas luminárias balançavam com o vento que entrava pelas janelas, clientes riam e um cover de João Gilberto tocava ao vivo quando Abdou, com seus passos largos, passou pela entrada já sacando as duas pistolas debaixo do paletó e disparando freneticamente uma chuva de projéteis em direção à mesa que estava perto da última janela. Gritos desesperados eram abafados pelo estampido dos tiros. Os disparos eram cadenciais, uma pistola depois da outra, mas para quem observava era como se disparassem ao mesmo tempo. Os estojos eram ejetados pelas armas enquanto a fumaça e o barulho tomavam conta do lugar. Uma garrafa de vinho foi atingida com um tiro e espirrou o líquido vermelho para todos os lados. Pessoas corriam e se escondiam debaixo das mesas e do balcão. O casal que estava na mesa perto da janela, uma senhora grisalha e elegante e um homem de meia idade, caíram, cada um de um jeito diferente, sendo que o homem acabou com o rosto dentro do prato de espaguete e a mulher com a cabeça pendendo para trás em sua cadeira, com os olhos ainda abertos em direção ao teto. Tanto a mesa quanto a parede atrás ficaram todas sujas de sangue. Quando Abdou deixava o restaurante o corpo da mulher grisalha ainda jorrava sangue de um disparo que a atingira na base do pescoço. Os canos da arma fumegavam quando ele as colocou no coldre e entrou no carro.

O sedan alemão andava rápido na avenida quando Abdou esboçou um pequeno sorriso. As duas pistolas de fabricação brasileira lembravam-no sempre de suas duas antigas espadas - cimitarras de aço damasco com punhos de ébano - suas preferidas quando ainda lutava nas inúmeras guerras na África. A grande diferença é que as armas modernas eram mais “limpas”. Certa vez, em uma batalha perto de Mogadishu, quando ele e seu exército cercavam um pequeno forte, ele cortou um soldado português ao meio com tamanha força que o conteúdo dos intestinos do homem espirraram em seu nariz e boca e escorreram por sua garganta. Nessa época já existiam armas de fogo, mas ainda eram desajeitadas e difíceis de operar. A pistola semi-automática não, era uma maravilha da tecnologia bélica. Fácil de operar e confiável quando bem manutenida, fazia pouca bagunça além de um ou outro esguicho de sangue. Por pior que fosse o estrago de uma arma de fogo não se comparava a uma decapitação ou tripas estourando após um golpe certeiro de espada.

Aqueles cultistas do restaurante estavam do lado errado da guerra. Este era um conflito diferente. Uma guerra do Inferno. Não uma das diversas escaramuças humanas no passado onde ele lutara por ouro, poder e luxúria. Era um conflito maior. Não havia precedentes para aquilo. Cultistas sempre tiveram salvo conduto, sempre. Tempos atrás, era impensável ter feito o que acabara de fazer. Os Senhores do inferno sempre tiveram suas rusgas, mas tudo era resolvido da forma tradicional. O mundo dos homens era lugar para colher sacrifícios de almas e carne. Jamais fora um campo de batalha. Porém não estava na posição de questionar, como Mestiço que era, estava apenas acima dos humanos no degrau da hierarquia. Abdou era um mero soldado das hordas do abismo.

Continua...

Teodoro Franco
Enviado por Teodoro Franco em 22/12/2024
Alterado em 18/02/2025
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