Teodoro Franco

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A Rainha do Abismo - Capítulo 05 - Emprego Novo
A Rainha do Abismo - Série Detetive Amanda Cruz.

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Capítulo 05 - Emprego Novo


Já era noite quando um carro saiu do motel. Love Bites, dizia a placa vermelha iluminada com lâmpadas de neon em cima do portão pintado com um coração em chamas. Amanda chupava um picolé sabor blue ice quando Jorge murmurou: “são eles”. Jorge levantou rapidamente a câmera que estava no seu colo e bateu várias fotos. Ele acelerou o Opalão e começou a seguir o veículo pelas ruas da cidade. O Nissan parou em um Shopping e dele desceu uma mulher com um vestido verde. Jorge conseguiu bater mais fotos quando a mulher descia do Nissan e entrava no Shopping. “Golaço” disse Jorge com um sorriso no rosto.

- Então, Amanda, basicamente é isso. Melzinho na chupeta.
- E agora? - perguntou depois de ouvir mais uma gíria da época dos dinossauros.
- Entregamos o material para o cliente.
- Ok. Deu pra entender.
- O que fizemos chama-se campana móvel1.
- Hmm. Entendi.

Ela estava aprendendo muitas coisas. Parecia melhor que ser camgirl ou puta. Pelo que havia entendido, a maioria dos serviços eram relacionados a questões conjugais. Conforme Jorge havia lhe dito, a precificação se dava de acordo com a cara do cliente. Se fosse um cliente com cara de rico o preço subia mas, ainda segundo ele, “pobres costumam ser bons pagadores”. Adultério não tinha classe social, disso Amanda sabia, muitos clientes da webcam exibiam suas alianças douradas sem o menor pudor. Ela sempre imaginou o porquê dos casamentos não darem certo. Em uma de suas desventuras amorosas, um cara que dizia estar se separando a enrolou por meses antes dela descobrir em suas redes sociais fotos felizes dele com a família na praia. Para ele fora apenas uma aventura, para ela restara a frustração e o sentimento de culpa. Ela tinha o dedo podre para homens, sabia disso, mas já havia parado de se culpar. Desde a puberdade começou a ser vista com outros olhos pela fauna masculina. Se aproveitou disso algumas vezes. Mas tinha suas dúvidas se a recíproca também não seria verdadeira. No fim das contas o mundo parecia funcionar daquele jeito, as pessoas não se diferenciavam muito de animais. Gatos fazendo bagunça no telhado, ou uma farra de cachorros trepando na rua. Era uma putaria. O sexo movia o mundo.

Quando chegou em casa encontrou mais boletos enfiados debaixo da porta. “No primeiro serviço o aluno não recebe, ok. Mas a aula é de graça” - Jorge havia dito. “Aula de graça uma porra! É muita malandragem. Mas que velhote pão-duro. Que diabo de regra era aquela!?” - pensou Amanda, havia ficado horas dentro daquele carro escutando aquela rádio brega ridícula. Respirou fundo, ainda olhando para os boletos. De qualquer forma era, sem dúvidas, uma alternativa para deixar a webcam. No fundo sabia que Jorge havia dado a ela uma oportunidade, uma saída, além de ter salvado sua vida. Lembrou da cara do cliente ao receber o envelope pardo com as fotografias. “Que filha de uma puta! Ela disse que tinha ido fazer compras... Vou dar um tiro na cara dessa bandida! Que covarde, eu dei tudo pra essa vagabunda!” Ela já havia sido traída e sabia o que o homem sentia, no entanto tinha uma empatia pela adúltera, por algum motivo que não sabia explicar.

Abriu as janelas, o mesmo barulho de sempre invadia o apartamento. Buzinas, vozes, o tráfego das pessoas e das máquinas que as serviam, o ruído da cidade que se movimentava na manhã. Seu relógio biológico estava todo bagunçado, assim como seu apartamento. Acendeu um cigarro com um novo BIC rosa choque. Os últimos dias foram caóticos. Abriu a torneira, deixou a primeira água com cor de ferrugem ir embora e encheu dois dedos da pequena panela de aço com a água cristalina que veio depois. Mudou de ideia, “que nojo”, jogou a água fora e encheu a panela novamente com a água do filtro de cerâmica. O esmalte da logomarca ainda estava perfeito após anos de uso, era uma das poucas lembranças da casa em que crescera com a sua mãe já falecida. “A vida era tão mais fácil” pensou ela. Abriu o pacote de macarrão instantâneo e jogou na água fervente. Uma hora depois já estava deitada na cama, de banho tomado, olhava para o teto, milhares de coisas passavam em sua cabeça. Ishtar, quem seria ela? Já se sentia envolvida naquilo tudo. Sua vida havia virado do avesso.

Acordou com o celular tijolão tocando. A luz amarela da tela piscava enquanto tocava um som tosco de água escorrendo e sapinhos coaxando no fundo.

- Oi.
- Oi, Amanda. To aqui na porta do prédio.
- Ok. Espera um pouco, vou só trocar de roupa.

Era fim de tarde quando passavam pela avenida. O sol já estava a um ângulo de quarenta e cinco graus, seus raios davam um tom amarelado às ruas movimentadas da cidade. O cliente desta vez era um advogado. Processo de execução. Jorge havia dito que eram os piores para se negociar, mas fazia parte do trabalho e que naquela profissão não se podia escolher muito os clientes. Em um processo na justiça, muitas vezes a parte perdedora escondia seu patrimônio para não pagar o que devia. O serviço, no caso, era justamente aquele. Localizar o patrimônio de um caloteiro.

- Então, é o seguinte, o nosso cara mora de aluguel nessa casa aí.
- Aham.
- Vamos entrar e ver o que ele tem lá dentro. Uma moto na garagem, uma TV decente, uma cama boa, qualquer coisa…
- Uma cama?
- As “king size” são dos itens mais procurados do leilão judicial.
- É sério? - Ela riu meio espantada.
- Sim. Geladeiras duplex vendem bem também. Mas enfim, qualquer coisa que você ache que tem valor, grave na cabeça, inclusive a marca.
- Ok. Mas como vamos entrar lá, tem gente lá dentro.
- Sim, ele já chegou do trabalho. Por isso viemos agora.
- Tá, mas e aí?
- E aí que agora vem sua segunda lição...

Jorge puxou uma mochila jeans pré histórica do banco traseiro do Opala. Deu à moça um guarda-pó azul e um crachá. Pegou para ele um guarda-pó parecido, todo manchado de cloro, porém cinza.

- Hoje você será uma Agente de Endemias em sua saga heroica no combate a dengue, essa doença maldita que assola nosso lindo país. Tente interpretar bem o personagem, ok?
- Esses uniformes estão diferentes…
- Eu costumo usar esse seu. Esse aqui eu uso na oficina, dei uma lavada nele e tá zero bala.
- Ele não vai perceber?! - Ela começou a ficar ansiosa. Sentia-se em um filme de agente secreto em que o 007 tinha sido substituído pelo paciente de um consultório geriátrico.

Desceram do Opala e tocaram a campainha.

- Boa tarde, estamos na campanha de combate ao mosquito da dengue, podemos entrar para dar uma olhada?
- Boa tarde, podem entrar – respondeu o anfitrião caloteiro ao abrir o portão.

Jorge já estava com uma perna dentro do quintal quando o homem verbalizou autorizando a entrada. “Boa tarde”, Amanda disse da forma mais simpática que pôde. Notou que o homem olhou para sua bunda quando passava pelo portão. Não havia nenhum veículo na residência, mas lá estava na cozinha uma geladeira grande, duplex, com acabamento inox. A cama era pequena, de solteiro.

- No meu quarto não tem água parada, moça, o que tá olhando aí? - O homem disse desconfiado, já havia perdido o interesse pela bunda dela.
- É que eu…
- Pode assinar aqui pra mim, senhor? - Jorge interrompeu oferecendo a prancheta para o homem. – Confira o endereço, por favor.
- Hmm, sim, ok.
- Só se lembre de conferir os vasos de plantas da próxima vez, tinha alguns cheios de água.
- Sim, é que a gente vive nessa correria né – disse ele meio sem graça.
- É um trabalho de segundos, é só colocar areia na base dos vasos.
- Sim, da próxima vez eu vou… - Gaguejava ao mesmo tempo que era interrompido por Jorge.
- Muitas pessoas morreram ano passado com a dengue. Precisamos da colaboração de todos os cidadãos.
- Desculpe, da próxima vez vou tomar mais cuidado.

Ao passar pelo portão, tranquilamente, Jorge acendeu um cigarro. Amanda estava se sentindo estranhamente bem, apesar de quase ter sido pega na mentira. Era um prazer estranho, o prazer de enganar outro ser humano, o prazer do pecado da mentira.

- Melzinho na chupeta… - Jorge ligava o carro.
- Nossa. Foi muito legal! - Dessa vez não se incomodou com a gíria de tiozão proferida por Jorge.
- E aí, o que conseguiu ver lá dentro?
- Uma geladeira grande marca brastemp e uma TV.
- Viu a marca da TV?
- Não consegui.
- A TV era samsung. Com o tempo você vai pegando o jeito. Lá atrás no quintal tinha uma máquina de solda também, uma daquelas grandes.
- Você chegou bem na hora.
- Você foi muito bem, Amanda. – Olhou para ela, as rugas de uma vida dura e os cabelos grisalhos amarrados atrás da nuca.
- Obrigada.

Ela começava a se acostumar com ele. Era como andar com um avô que nunca havia conhecido. De certa forma ele havia acabado de salvá-la novamente, além de ter lhe ensinado outra lição importante. Estava gostando daquilo tudo. Realmente sentia que havia conseguido uma alternativa para sua vida de camgirl e aspirante à garota de programa. Ali ela não se sentia suja, usada. Mesmo nos trabalhos virtuais aquele era um sentimento inevitável, como se fosse descartável, um objeto para o gozo de outros. Ali não. Acabara de desmascarar um caloteiro. Podia se sentir parte de algo relevante agora. Pensou na mulher do corno, na adúltera, “mas nem tudo são flores” refletiu, ainda tinha empatia pela mulher apesar de tudo. A euforia diminuiu quando lembrou que o homem afirmara que mataria a mulher. “Não nos metemos com esses assuntos” – Jorge havia lhe dito quando ela o questionou sobre o assunto. Mas aquilo a incomodava.

- Sobre a mulher de ontem, Jorge...
- O que tem aquela puta?
- Não gosto de julgá-la dessa forma. – Fechou a cara, ao dizer aquilo ele deixava de ser o avô gentil e voltava ao velho rabugento de sempre.
- Tá, mas e aí?
- Poderíamos avisá-la. Aquele cara disse que ia dar um tiro nela.
- É como eu te disse antes: em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher.
- Então vamos deixar ele matar ela? Ainda dá tempo.
- Ok então.
- Hãm? Ok?
- Ok, vamos lá então.
- Certo. - Ela não esperava a concordância dele. – Onde encontraremos ela?
- Na casa do Ricardão, ela deve estar lá.
- Sabe onde ele mora?
- Sim. Eu já tinha tentado flagrá-los em uma data anterior. Não consegui, mas guardei o endereço do cara.

Era uma casa geminada, daquelas que são construídas duas idênticas, de frente para a rua, no mesmo lote. A casa do amante era a pintada de azul. Jorge bateu no portão. O homem atendeu sem camisa. Barrigudo e careca. “O que a mulherada enxerga nesses caras, gente, pelo amor de Deus”, pensou Amanda.

- Cadê a Sandra? - Jorge foi direto ao ponto. Amanda não esperava, ainda estavam com os jalecos, imaginou que seria como com o caloteiro. Uma abordagem sutil e discreta.
- Quem? - O Ricardão fingiu de bobo, mas os olhos esbugalhados não enganavam.
- Você sabe.
- Nunca vi essa mulher na minha vida.

Jorge sacou uma arma, do nada, estava no seu tornozelo em um coldre velado de tecido. Era uma pistola, pequena e prateada. Amanda se assustou, o Ricardão mais ainda.

- Não vou te perguntar de novo, filho da puta. - A calma nas palavras de Jorge não coincidiam com sua expressão facial, estava com cara de mau, a cara de um homem perigoso.
- Beleza! Beleza! Eu falo! Tá certo?! Eu falo!
- E então?
- To saindo com ela, cara, mas por favor, não me mata...
- Onde ela tá?
- O marido dela que te mandou né? Por favor, cara, não me mata!
- Onde ela tá, babaca, fala!
- Não vejo ela desde ontem a noite! Por favor, mano, não me mata. – O homem começou a chorar, ficou mais feio ainda com a cara de choro.

Jorge virou as costas e entrou no carro. O Opalão já roncava forte quando Amanda bateu a porta e eles seguiram pelas ruas da cidade. Já era noite quando chegaram no mesmo lugar onde haviam entregado o envelope para o marido traído. Mas desta vez era diferente. Luzes de giroflex de viaturas da Polícia Militar. Uma viatura com pintura preta e branca da Polícia Civil escrito Perícia Criminal já estava na porta da casa do bairro de classe média alta. Curiosos se aglomeravam na rua. Aqueles ainda mais curiosos se acotovelavam perto do portão aberto da casa. Amanda desceu do carro e foi até o portão, empurrando algumas pessoas para conseguir chegar. “Nossa, ele matou ela.” “Quem suicida vai pro inferno, minha avó falava isso...” “Se a gente conseguir uma foto dos presuntos, cara, dá pra postar no youtube e fazer um troco, dá pra monetizar isso aí.” “Escutei os tiros, tava assistindo o jogo na rede globo, aquele técnico é o mais burro do mundo, puta que pariu...” Os bochichos dos curiosos competiam com o rádio do policial que fazia o perímetro do local do crime. Amanda olhou pelo portão e viu um Perito retirando uma luva cirúrgica suja de sangue. Um barulho de sirene ecoou pela rua. O rabecão2 da polícia havia chegado.

- Quantos corpos, irmão? - O motorista magrelo do rabecão perguntou ao policial que estava com o rádio.
- Dois: um homem e uma mulher.

Amanda escutou o breve diálogo e o entendeu perfeitamente. Para Amanda era o suficiente. Não sabia em que pensar. Não sentia culpa, nem raiva, só tristeza. Seguiu até o Opalão. Jorge não havia descido do veículo e fumava um cigarro. Ele não perguntou nada pra ela. Ela também nada disse.
Teodoro Franco
Enviado por Teodoro Franco em 17/02/2025
Alterado em 18/02/2025
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