A Rainha do Abismo - Capítulo 06 - Cibele
A Rainha do Abismo - Série Detetive Amanda Cruz.
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Capítulo 06 – Cibele
Trago seu Amor de Volta. Amarração para o amor. Desmancho feitiços. Levo a pessoa amada aos seus pés! Consulta grátis! - Cibele. Telefone: 2527-6625 – estava escrito no anúncio de jornal. “Imaginei que era maior, poxa, paguei uma boa grana por isso”, pensou ela. A propaganda estava bem próxima dos anúncios de venda de eletrodomésticos e móveis usados nas páginas amarelas do jornal de 1 real e cinquenta centavos. A casa, limpíssima, cheirava a incenso. A favela estava agitada, era sábado, dia de futebol e cerveja gelada. As pessoas estavam nas ruas, nas calçadas e nos botecos. Crianças corriam pelos becos atrás de bolas e pipas. Cibele fazia a unha dos pés com uma bacia de água quando sua campainha tocou. “Nossa, será que é um cliente em pleno sábado?” Queria tirar o dia para o descanso. Fizera muitas consultas durante a semana, aquele era um negócio que nunca estava em baixa. As pessoas nunca deixavam de se apaixonar e de se desiludir. A campainha tocou novamente. “Já vai!”. Colocou uma touca de cetim para atender a porta, seus cabelos estavam amarrados, ia trançar no início da semana.
– Boa tarde, gata, como vai?
– Olha, que surpresa, Jorge. Como vai!?
– Vou bem. E você? Muito ocupada?
– Pra você nunca to ocupada, meu bem. Quem é a moça?
– O nome dela é Amanda. To ensinando ela umas coisas.
– Vixe, não fica seguindo esse cara não hein, moça. Cuidado! – E deu uma gargalhada com a voz grave. – Podem entrar, gente. Não reparem a bagunça.
– Prazer... – Amanda deu um abraço sem graça como apresentação.
– Sou a Cibele, Amanda, é um prazer também. Fica à vontade, o Jorge é de casa.
Jorge olhava um estranho aquário quando Cibele fechou a porta da casa que dava direto para um dos becos da favela. “Bagunça...” Amanda pensou, a casa era super bem arrumada e cheirava a incenso de jasmim. Bagunça era seu apartamento, aquela casa ali podia servir de bloco cirúrgico para uma Emergência. Jorge continuava a olhar o estranho aquário redondo que brilhava sob uma luminária de led.
– Viu alguma coisa diferente nele, Jorge? - Cibele perguntou fazendo uma carinha atrevida.
– Está mais agitado, né.
– Sim. Joguei enxofre na água.
– Sério?
– Sim. Desde então ele pareceu ficar mais confortável.
– Pois é. Ele só ficava parado no fundo toda vez que eu via ele.
– Coitadinho, deve ter sofrido tanto, nunca soube como cuidar dele direito.
– Cuidado com esse bicho, hein - disse ele de olho espichado.
– Botei o nome dele de Gustavo.
– Nossa… Gustavo?
– Vou fazer um chá pra gente. Tem um bolo que fiz de manhã, vou trazer pra vocês.
– Eu to cheia, muito obrigada. – Amanda continuava em clima de apresentação.
– Ah que isso, menina, não precisa ficar com vergonha.
Cibele foi até a cozinha enquanto Amanda foi olhar o aquário que Jorge observava com curiosidade quase científica. A luz da luminária brilhava com as partículas amarelas suspensas – provavelmente o enxofre – e na água nadava um animal muito estranho. Era do tamanho de um dedão, seu corpo parecia com o de uma lesma mas tinha inúmeras excrescências que se projetavam das laterais do corpo que tinha uma cor vermelha bem escura, em tons quase pretos. Se existisse uma cor preto-avermelhada essa seria a mais adequada para descrever a tonalidade daquele bicho.
– Trouxe para ela de presente. Peguei em um afloramento. Fiquei com dó de matar, estava se rastejando no chão.
– O que é um afloramento?
– Ah sim. Hmm... – Pensou ele em uma forma de explicar melhor. – É um local onde um demônio se manifesta em nosso mundo, para receber sacrifícios.
– Tipo a cripta onde quase me sacrificaram?
– Sim. Isso mesmo.
– Então esse bicho do aquário veio do outro lado?
– Sim. Acho que eles tem uma fauna própria de lá.
– Credo. Ele é horroroso. – Olhou para a criatura que nadava com movimentos muito incomuns.
– Você tem que ver as plantas deles... – Jorge riu.
– Trouxe um bolinho, pessoal. A água do chá já tá esquentando. – Cibele veio com um prato cheio de pedaços de bolo de chocolate, cortados em quadradinhos.
– Ah, maravilha. Esse é o melhor bolo do mundo, Amanda.
– Sei porque você veio aqui, Jorge, não me iludo com seus elogios, você é interesseiro.
– Você sabe que eu te amo – disse com a boca cheia de bolo de chocolate.
– Ela pode ouvir essas coisas? - Saiu para a cozinha quando a chaleira apitou.
Amanda, por um momento, se sentiu como se fosse uma criança em uma conversa de adultos. Jorge havia lhe dito que Cibele era uma sensitiva poderosa. Suas premonições e clarividências eram reais, apesar do trabalho como “feiticeira do amor”. Ela era abençoada com uma elevada percepção extrassensorial.
– Trouxe um chazinho de capim cidreira.
– Capim-santo como dizia minha avó – disse Jorge.
Amanda percebia um afeto muito grande de Jorge com Cibele. Será que ele era gay ou bissexual? Ou era uma espécie de carinho fraterno? Ele não era assim com ela. Amanda sentiu uma espécie de ciúmes. “Credo”, pensou ela, “ele é mais velho que uma múmia do Egito”. Sempre o vira ríspido e sarcástico com tudo e todos, um cinismo que sempre chegava antes dele em qualquer lugar, mas com Cibele era diferente. Olhando para a Travesti era difícil associar a personalidade carinhosa à sua figura imponente, com enormes implantes de seios em um corpo robusto e uma testa forte e viril. Por dentro era uma mulher, com traços ainda mais femininos que os dela própria.
– Sobre aquilo, podemos falar perto dela sim, gata.
– Tudo bem.
– Seu chá tá ótimo.
– Ah obrigada, Jorge.
– Essa moça já está envolvida com tudo isso, de um forma ou de outra. Foi ela que você viu da última vez, nas visões.
Amanda percebeu que o clima mudou com aquele assunto. O ar de paquera, ou de encontro entre irmãos, seja lá qual fosse a relação daqueles dois, havia mudado junto com as feições de Jorge e Cibele que demonstraram um certo incômodo difícil de esconder.
– Eu tive outra visão, Jorge.
– Eu sei.
– Então, porque não veio? Eu te liguei!
– Estava ocupado ontem. Desculpe.
– Ok.
– Além do mais, você me disse praticamente tudo pelo telefone.
– Não queria que viesse por isso, mas sim por mim. Você é meu amigo, é isso que os amigos deveriam fazer.
– Desculpe.
– Tudo bem. Não tem problema. – Cibele se recompunha, ajeitando o corpo no sofá. – É que essas visões são muito difíceis para mim.
– Eu sei disso.
Jorge colocou a xícara em cima do pires e serviu-se de mais chá. Cibele olhava meio emburrada para um dos cantos da sala. Amanda se sentia como em uma discussão de família. Agora parecia estar mais clara a relação dos dois, ou não.
– Eu vi uma criança, Jorge. Uma criança bem pequena. Aqueles filhos da puta estavam preparando ela para ser devorada! - Ela começou a ficar mais agitada.
– Calma, vamos por partes.
– Calma nada! Você não sabe o quão ruim é ver isso!
O clima estava ficando realmente tenso. Amanda olhava tudo aquilo mas continuava comendo os bolos, estavam muito bons.
– Onde era o afloramento? Onde eles estavam?
– Eu te disse pelo telefone.
– Sim, mas não tem mais detalhes?
– Não! Era uma floresta com bambus.
– Sim.
– O céu estava preto e uma luz brotava do chão.
– Lembra de alguma montanha no horizonte? Alguma referência? Você disse que tinha água.
– Sim era a margem de um rio, ou de uma lagoa, não sei bem.
– Sim, descreva melhor.
– Não dava pra ver. Foi diferente daquele último. Nele eu vi aquela igrejinha, a capela de madeira.
– Quem fazia o ritual? A conjuração.
– Não me lembro bem… - Franziu a testa olhando para cima, tentando se lembrar.
– Tente se esforçar.
– To tentando! Não sei bem, tinha uma mulher diferente…
– Sim, como era essa mulher?
– Usava um vestido, como um vestido de boneca, um vestido rodado bem exagerado, mas bonito.
– Era uma boneca?
– Não, nossa, Jorge, as vezes você parece meio burro. – Ela olhou para o teto, tentando manter a calma para explicar. - Era uma pessoa, uma moça mesmo. Vestida de princesa ou de bailarina.
– Aham, sim. – Jorge puxou um caderninho do bolso, a capa toda encardida, deixou cair no sofá uns cartões de visita, uma nota fiscal, um guardanapo com rabiscos, se embaralhou todo – floresta de bambus, beira de rio, mulher com vestido de boneca, princesa – anotou mais coisas com uma canela esferográfica com o cabo cortado ao meio. – Sim, tinha o que mais? O que mais você viu?
– Acho que tinha um ônibus no fundo. Um ônibus colorido, bem velho.
– Fora essa moça vestida de boneca. Como eram as outras pessoas? – Jorge perguntou enquanto anotava no caderninho.
– Havia alguns homens, não sei bem, essas visões não são como em um filme, Jorge.
– Tente se lembrar…
– Não é como em um filme, é tudo embaçado, como um pesadelo… é horrível!
– Ok.
– Tinha alguns homens, um era mais velho, o outro era um rapaz, o rosto deles era branco.
– Muito branquelos? Tinham cara de gringo?
– Não. O rosto era branco como se… era pálido, como se tivessem passado pó de arroz, maquiagem.
– Sim...
– Um deles tinha o cabelo vermelho, eu acho, fazia uma careta horrível, tinha uma boca enorme.
– Cibele. - Jorge parou de anotar. – E a criança?
– Era bem pequena, não sei se menino ou menina.
– Bebê de colo?
– Não, já andava.
– Sim, sei. Tipo uns 2 anos de idade?
– Acho que sim. Talvez mais.
Amanda assistia aquela conversa quando alguém bateu à porta. “Quem será?” Cibele se levantou e enquanto foi atender, Amanda viu Jorge passando a mão nos cabelos brancos amarrados para trás, pensativo. “Não estou atendendo hoje, meu bem, desculpa”, Cibele falava da porta. O incensário verde de cerâmica em formato de gatinho sobre um armário de madeira soltava uma fumaça com cheiro de jasmim. Amanda olhou a bizarra criatura no aquário, continuava nadando com seus movimentos incompreensíveis. A casa de Cibele era muito aconchegante, era como a casa onde crescera com a sua mãe. Cibele continuava na porta, tentando marcar um novo horário com a cliente. Pessoas passavam na rua e a cumprimentavam. Pela porta aberta entravam, além da claridade, os barulhos animados de uma tarde de sábado. Jorge continuava perdido em seus pensamentos. Amanda pensou na criança das visões.
– Jorge, e Deus?
– O que tem Deus? - Jorge voltou do mundo dos pensamentos.
– Onde ele entra nisso tudo?
– Deus está do nosso lado.
– Tá, mas ele faz o quê?
– Como assim faz o quê? Ele é Deus, ora bolas.
– Depois que fiz um novo anúncio no jornal é isso aí toda hora. - Cibele voltava da porta junto com sua simpatia de costume.
Ela parecia já ter esquecido a conversa que tinha com Jorge sobre as visões. Jorge não quis voltar no assunto. Conversaram por mais umas duas horas. Duas vidas duras cheias de sofrimento e meia dúzia de alegrias, aqui e ali. Amanda percebeu que era parecida com eles, só que mais jovem. Cibele era daquelas para se guardar para sempre no coração. Ao fim de uma travessa de bolo de chocolate e 1 litro e meio de chá, desceram os becos da favela até o Opalão, já anoitecia.
continua...
Teodoro Franco
Enviado por Teodoro Franco em 06/03/2025