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Capítulo 07 – AQUA VITAE
Diego fazia flexões. Os punhos cerrados apoiados no piso frio, o peito forte tocava no chão e subia novamente com o movimento dos braços. Estava nas últimas repetições, quase exausto. Antes disso havia feito agachamentos, poucas séries, poucas repetições e muito peso, do jeito que ele gostava de trabalhar as pernas.
Tirou a segunda pele da Adidas e jogou no cesto de roupas. Entrou no chuveiro antes da água esquentar. Gostava da solidão. O sacerdócio foi uma escolha, não uma obrigação, diferente da sua entrada na Ordem. Anos antes, em uma noite chuvosa, dois homens pediram ajuda na igreja, um deles sangrava muito, havia sido ferido por diversas estocadas. O homem ferido morreu, mesmo com os esforços de Diego. A estranha história contada pelo outro homem, apesar de absurda, pareceu verídica em muitos pontos. O outro homem era Jorge. Uma das provas apresentadas a Diego fora uma tocha embebida por um estranho líquido. Ao acender a tocha, o combustível queimava uma chama negra. Aqua Vitae, Padre Diego ouviu do sujeito cujas roupas estavam ensopadas de chuva, suor e sangue. Não era necessariamente uma prova cabal daquela história maluca, mas aquele fogo negro tinha um quê de profano e sobrenatural já à primeira vista. Agora ele podia dizer que tudo fora uma grande imprudência, além de uma decisão estúpida. A chance da decisão correta ter sido ajudar um homem desconhecido a enterrar um morto atrás da igreja, era mínima em qualquer contexto. A decisão mais racional seria ter parado na extrema unção, quando a vítima ainda vomitava sangue e convulsionava dentro da igreja, e depois chamar a polícia. No final das contas o tempo provou que a absurda narrativa de Jorge era verdadeira, e que o mundo no qual Diego vivia era uma grande farsa. A humanidade era como um galinheiro, cheio de galinhas que mal fazem ideia que estão ali sendo criadas para o abate. O sangue e as almas das pessoas eram uma commodity disputada no inferno, assim como o petróleo gera disputas no âmbito das nações.
Colocou um guarda pó cinza e seguiu até a Igreja fechada. Atrás do púlpito, entrou no corredor, passou pelo banheiro e chegou até um quartinho que servia como depósito de produtos de limpeza e outras coisas. No canto do quartinho abriu um cadeado que fechava um alçapão instalado no piso. Desceu a estreita escada de ferro, após fechar a tampa do alçapão, até um interruptor que estava na parede do pequeno porão. O porão foi iluminado pela claridade de uma única lâmpada halógena que estava pendurada em um fio que saía do teto. O porão tinha sido pintado apenas com cal branca e estava cheio de tambores de plástico de 50 litros, azuis, do tipo bombona, com as tampas fechadas com rosca. Uma cruz de ferro estava apoiada no canto da parede perto de um alambique de cobre de formato engraçado. O alambique parecia antigo, adquirido de alguma cachaçaria artesanal. Tinha aproximadamente um metro e meio de altura e resumia-se basicamente a um pequeno forno a carvão sob um gordo bojo de cobre, hermeticamente fechado, que se afunilava em um “pescoço” de metal até se tornar um fino tubo de serpentina, que se ondulava até mergulhar em um recipiente cheio de água que servia para resfriar o vapor que, por sua vez, dava origem ao misterioso líquido que caía no tonel, também de cobre. No porão bagunçado estavam diversos sacos empilhados com plantas e tubérculos estranhos, além de uma pia batismal de pedra, daquelas onde se colocam água benta.
A oração deveria ser realizada na Língua Antiga, o idioma original. Padre Diego tinha as difíceis palavras anotadas em uma caderneta cuja capa tinha o desenho de uma moça loira tomando sol na praia, a caderneta ficava sempre em um dos nichos do armário empoeirado do lado da escada. Nesse armário eram guardados ainda luvas de borracha, um par de galochas, um guarda pó reserva escrito SENAI e algumas ferramentas.
A AQUA VITAE era uma das poucas coisas no mundo dos homens capazes de ferir um nativo do Inferno. Ela por si só era um líquido inofensivo, porém, após entrar em combustão, sua chama negra causava danos severos a qualquer Demônio atingido por ela. Sua produção era um segredo alquímico guardado à sete chaves pelos membros da Ordem.
Padre Diego pegou um dos sacos de carvão mineral empilhados em cima de um pallet de madeira, abriu com um tesourão de ferro e despejou através da portinhola do forno que ficava debaixo do alambique ao nível do chão. Repetiu a ação mais duas vezes com outros dois sacos de carvão. Feito isso acendeu o carvão com óleo diesel e fechou a portinhola. O forno tinha uma tubulação para a saída da fumaça, que saía por uma discreta chaminé atrás da igreja. O padre começou então a despejar o mosto fermentado no recipiente bojudo do alambique logo acima do forno. Desenroscava as tampas das bombonas de plástico que ao se abrirem faziam um barulho parecido com o de uma tampa de refrigerante ao ser aberta. A pressão era fruto da fermentação do estranho líquido fabricado com as plantas e tubérculos de diferentes origens. Os músculos fibrados do padre levantavam as pesadas bombonas com facilidade, o conteúdo era despejado no alambique para ser fervido e ter sua essência inflamável separada do resto. O líquido que caía no tonel tinha um leve cheiro herbal. Aquele alambique trabalharia por horas até que todo o líquido fosse destilado e somente após isso o ritual complexo que usava uma cruz, água benta e a língua antiga, seria realizado para transformá-lo no produto final: a AQUA VITAE.
Os afazeres de pároco tomavam um bom tempo de Diego. A academia improvisada na sacristia era seu único entretenimento já que sua cruzada particular na Ordem era ainda mais do que um mero trabalho. Apesar do cansaço e das dores musculares, a academia era uma atividade que dava a ele grande prazer. O sacerdócio fazia-o questionar esse sentimento, se seria um prazer carnal como os demais criticados pela Santa Igreja. Era um debate mais adequado aos teólogos escolásticos, não cabia a ele como simples Padre fazer tais questionamentos e, ainda pior, talvez chegar a uma conclusão errada. Além do mais precisava de seu corpo forte nas ações com Jorge. Seu cruzado de esquerda já havia sido útil em momentos difíceis. Um outro argumento que ele usava para si mesmo era a citação de Coríntios: “vosso corpo é o templo do espírito santo”, Deus deveria preferir habitar um templo forte, “mens sana in corpore sano”. Ele não poderia estar errado e, mesmo se estivesse, talvez não abandonaria o halterofilismo. “Deus em sua infinita bondade perdoaria qualquer pecado”, esse era o argumento final que usaria para si mesmo. A vida religiosa por vezes levava a essas bitolações, pensamentos fixos, frutos da solidão dentro das paredes frias da igreja. As raras visitas de Jorge, geralmente para pedir algum favor ou planejar alguma ação relacionada à Ordem, eram bem-vindas. Vez ou outra um outro padre visitava a Igreja, seja oficialmente como protocolo da congregação ou algum colega de seminário querendo matar a saudade. Apesar disso continuava sendo uma vida solitária. As missas, salvo as de domingo, eram pouco frequentadas e as visitas a enfermos em domicílio e em hospitais era agora realizada por um pequeno grupo de três Padres formados em psicologia, uma medida tomada pela gestão do novo Arcebispo Metropolitano. O homem tinha uma abordagem moderna, isso Diego tinha de admitir.
Parece que aquela era uma época de mudança de paradigmas. Na Igreja, o Arcebispo em sua tentativa de modernizar a gestão. No Inferno, a Guerra Civil entre Azazel e Ishtar. Não havia registros de algo como aquilo em nenhum livro antigo. Não com consequências tão evidentes no mundo dos homens. Nos “evangelhos” infernais - Azazel até dava seu nome a um deles - nenhum mencionava um conflito assim. Era algo novo, era difícil até mesmo de determinar qual seria o melhor papel para a Ordem no meio daquilo tudo. “As vezes seria melhor deixar que se destruam entre eles” pensava por vezes Diego. Porém, as pessoas no meio daquilo tudo, elas seriam as verdadeiras vítimas. Parecia que tinham aumentado a quantidade de sacrifícios, um crescimento da demanda, uma espécie de inconsequência dos próprios nativos do Inferno, movidos pela ambição de vencer a guerra, cada qual movido por seu próprio interesse. Nesse ponto Ishtar era a mais radical. Ela era um Demônio relativamente jovem, não era um daqueles que escolheram cair com Lúcifer no Poço, havia nascido depois. Era 100% infernal. Sua luxúria e desejo por sacrifícios não tinha par entre os demais. Aquilo refletia em seus próprios seguidores, não tinham rito definido, não respeitavam nenhuma liturgia e seus métodos eram brutais. Ishtar não parecia ter critério para recrutar seus acólitos, qualquer um poderia ser. Padre Diego não admitia, mas temia Ishtar, ainda mais que Azazel. Ela era diferente. Havia uma tradição, uma ortodoxia em toda aquela relação entre o céu e o poço, mas Ishtar não se encaixava naquelas regras. A motivação daquele conflito, Diego não sabia precisar, nem Jorge ou a sua amiga Bruxa. Mas se fosse para escolher um lado, escolheria o de Azazel. “Deus me perdoe” disse em voz baixa balançando a cabeça, “como posso pensar uma coisa dessas” continuou dizendo entre os dentes cerrados. Rezaria mais um terço de joelhos àquela noite.
CONTINUA...