Teodoro Franco

Textos


Capítulo 09 – Ishtar

 

 

 

A noite estava linda. O céu estrelado do interior exibia o longo rastro de poeira da via láctea. As árvores balançavam levemente com o vento calmo da noite. As sombras das montanhas emolduravam o horizonte com seus desenhos ondulados, curvas quase sensuais. Era uma noite perfeita para presentear a musa inspiradora daquele culto de sangue.

 

Dentro da água ela beijava o velho, acolhido no aconchego dos seus enormes seios. Raimundo estava com o pescoço em um ângulo de quase noventa graus, o sangue da criança escorria pelo seu corpo e entre os seios de Ishtar. Os dentes afiados da divindade cortavam sua boca e nariz enquanto ela o beijava com violência. Ishtar era enorme. Sua pele branca como marfim, lambuzada com o sangue da criança, assumia uma aparência impressionante à luz da lua refletida nas águas do rio. Os demais cultistas cantavam e dançavam em volta de uma fogueira que estalava em chamas vermelho-alaranjadas.

 

Padre Diego chegou atirando com sua calibre 12 pump, o fogo saía do cano cerrado, iluminando a escuridão na linha das árvores. Um balote de calibre 12 acertou a mandíbula de um rapaz vestido de palhaço que dançava ao redor da fogueira, sua cabeça quase foi arrancada pelo impacto e ele caiu já morto no chão, com os cabelos loiros sujos de poeira e sangue. Padre Diego já havia dado vários tiros, praticamente esvaziado o bujão da calibre 12, quando os cultistas começaram a correr em desespero. Alguns gritavam, outros, pelados, tentavam pegar as roupas jogadas no chão. Um dos fugitivos deu de encontro com Jorge que vinha de outra direção, com uma tocha de fogo negro em uma das mãos e um revólver na outra, Jorge a acertou no peito com um tiro de .38. A mulher vestida de bailarina caiu no chão, gorgolejando sangue. Mais que depressa, vendo que Diego recarregava a espingarda ajoelhado na terra, Jorge correu em direção à Ishtar que ainda segurava Raimundo em seus longos braços. A divindade estava dentro do rio, com a água em sua cintura e abraçava o velho de maneira obscena. Ela era muito grande. Os cabelos negros de Ishtar, sujos de sangue, se espalhavam pela água. Jorge guardou o revólver no coldre e tirou o punhal de bronze da cintura. Um dos cultistas passou correndo do seu lado com os olhos esbugalhados. O velho que estava sendo sodomizado por Ishtar foi solto e saiu do rio em um estranho estado de embriaguez e, meio cambaleante, também passou por Jorge em direção a um ônibus multicolorido, de viagem, que acabara de dar a partida. Jorge agora caminhava cautelosamente, todos os músculos do corpo rijos, como uma cobra prestes a dar o bote. Ishtar o olhava, os olhos totalmente negros, a cintura fina e as pernas longas e bem torneadas caminhando lentamente para fora da água, seus seios perfeitos balançavam na luz azulada do céu, uma beleza profana e antinatural.

 

Quer um beijo também, velhinho?

Sua puta! Vou arrancar seu coração!

 

Jorge correu em direção à Ishtar que lhe deu um tapa tão forte que ele sentiu suas costelas se quebrarem, antes de cair no chão, ao ser lançado a uns três metros de distância.

 

Como ousa me desafiar? - Ela pegou a tocha que ainda queimava com o fogo negro da AQUA VITAE e a lançou no rio.

 

Jorge ainda estava caído no chão quando viu Padre Diego apontar a espingarda para Ishtar no exato momento que um enorme tigre saiu – sabe Deus de onde – e literalmente voou em cima de Diego, em um rugido assustador, projetando-o para o chão. Padre Diego gritava, se debatendo com as perigosas patas do felino pressionando sua espingarda. Jorge também se pegou gritando quando Ishtar passou do seu lado, os pés descalços e a grande bunda perfeita em direção a Diego.

 

Pare! Volte aqui, sua cretina! – Jorge se levantava com muito esforço, as costelas doendo até o infinito.

 

O ônibus multicolorido acelerou com os faróis altos levantando uma cortina de poeira. O motor a diesel roncava em meio a fumaça da pólvora, a pintura do ônibus mostrava um palhaço sorridente, um elefante jogando futebol e uma tenda colorida de circo. Ishtar chegou até Diego, que já sentia o hálito do felino prestes a morder sua cabeça. Diego gritava quando viu a figura de Ishtar atrás do tigre. O animal, ao sentir sua presença, parou imediatamente e olhou para ela. Os lábios dela esboçaram um sorriso para o homem e a fera que o imobilizava. Ishtar era linda. Diego nunca havia visto algo assim em sua vida. Ela começou a acariciar o tigre como se fosse um gatinho. O animal passou então a roçar entre suas pernas. Ela pegou Diego, levantando-o do chão pela nuca e deu nele um longo beijo. Sua língua preenchia toda a boca do Padre, lambendo o céu de sua boca e penetrando até sua garganta. Os dentes pontiagudos de Ishtar mordiscavam os lábios e o nariz de Diego, ela gemia, a voz limpa como a de um anjo. Padre Diego teve uma ereção. Ele fechou os olhos, escutava ao fundo o Tigre ronronando como um grande gato. Diego perdeu a noção do tempo, ela era gostosa demais.

 

Em um instante tudo foi interrompido, foi como um relâmpago, o grito estridente de Ishtar ensurdeceu Diego e fez com que o enorme tigre corresse assustado para a linha das árvores que cercavam a clareira. Jorge havia cravado o punhal nas costas daquele Demônio. Ela soltou a mão que segurava o Padre firmemente pela nuca e retirou o punhal de bronze de suas costas, o jogando no chão. Ela gritava, sua boca se abrindo em um ângulo anatomicamente impossível. O Padre caiu ajoelhado, se sentia entorpecido, como que alcoolizado. Em um instante, Ishtar já mergulhava no rio que emanava uma sinistra luz que vinha do fundo.

 

Amanda chegou no Opala derrapando na terra empoeirada. Desceu do carro e foi de encontro a Jorge, deitado de costas no chão. Estava com um binóculo pendurado no pescoço, havia observado toda a ação e agora cumpria sua função principal. Pegou Jorge por debaixo das axilas e o arrastou com muito custo até o Opalão, que continuava ligado. Olhava para Diego que continuava ajoelhado olhando fixamente para o rio.

 

Diego! Caralho! Ajuda aqui, por favor!

 

Ele não a escutava, continuada ensurdecido pelo grito de Ishtar ao ser apunhalada. O zumbido em seu ouvido ecoava por dentro de sua cabeça. Os corpos de dois cultistas mortos continuavam na clareira: a mulher vestida de bailarina e o palhaço loiro. A fogueira continuava acesa. De súbito Diego acordou daquele transe e foi até Amanda, para ajudá-la a colocar Jorge, que estava desmaiado, no carro. As unhas de Ishtar haviam rasgado a gandola que ele vestia no momento do tapa, cortando seu peito e abdômen. Amanda olhava para Diego, a adrenalina a mil. Ajeitaram Jorge no banco traseiro do veículo.

 

Me espere um instante – disse o Padre.

O que foi!?

 

Ele foi até os corpos e os lançou na fogueira. Os braços fortes de Diego os jogaram na fogueira como se fossem bonecos de látex. O fogo pareceu aumentar por um instante. Ao voltar para o carro, Diego pegou o punhal que estava no chão poeirento. O punhal ainda estava sujo com o sangue negro de Ishtar. Aquele punhal foi o mesmo usado por Abraão, na ocasião em que ele quase sacrificou o próprio filho como prova de fidelidade a Deus. Era uma relíquia importante, uma das poucas no mundo dos homens capaz de ferir uma entidade como Ishtar. Sentou-se no banco de couro do passageiro, Amanda acelerou o Opalão em direção à estrada empoeirada, as mãos trêmulas de adrenalina no volante.

 

 

Continua...

 

Teodoro Franco
Enviado por Teodoro Franco em 10/05/2025
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